terça-feira, janeiro 08, 2008

O filho do seu Quinquim

Ele tinha 65 anos.
E reviveu aos 60.
Mas morreu aos 25.
Filho do seu Joaquim-Quinquim.

Morreu sim. De tristeza, poderia dizer. Daquelas que abatem qualquer mente jovem. Porém, diferente das de hoje, um pouco igual, confesso, mas um pouco bem diferente, idem. Sua fantasia não dependia da programação da televisão. Não tanto, já que se percebeu jovem, exatamente no ano de 58. Queria ser músico, mas, de certo, nasceu boêmio. Tocador de violão e cavaquinho. Ouvia muito rádio. Aprendeu de ouvido. Tentou ensinar ao filho que ainda viria a nascer, bem lá depois, mas foi em vão. Cultivava um bigode, costeletas e desejos. Cabelos ondulados, voz grave. Noivou cedo, mas casou só bem na frente, com outra. Via-se no espelho sempre que podia. Sensibilidade camuflada. Homem pra dedéu, dizia.

Era o mais velho dos irmãos. Oráculo. Logo novo, já aprendera a ganhar dinheiro. Fez pequena fortuna. Mas casamento, nem pensar. Por enquanto não. Era do tipo ainda-não-chegou-a-hora, mesmo já noivo, como falei. Ajudava a todos, homem de bom coração. Só não ajudou muito a si mesmo. Talvez, por isso, era mascate, do tipo moderno, não pós. Manaus, Teresina, Fortaleza, Aracajú, Feira de Santana, Salvador, São Paulo. Tipo Seu Quequé, pouco provável. Só suspeitas. Acreditava que iria enriquecer pelo comércio, lidando com gente. Gostava.

E muito, de lidar com gente. E lidou sim. Mas não juntou tanto, só o suficiente para uma juventude com ares lúdicos de prosperidade. Nunca matou ninguém, a não ser de raiva. Era teimoso demais. Porém, sabia de quem já havia matado gente. Um caso somente. Foi algo não premeditado, mas que lhe tirou algumas noites de sono. Pois acreditava no mundo melhor. Tanto acreditava que pretendia ter filhos. Eles vieram, bem depois: três. Um deles, sua cópia e quem o levaria na frente, de mãos dadas. O outro era o do cavaquinho, o que não quis aprender. Dois mais uma, eis a princesinha. Era como ele a chamava, ela que lhe daria dois netos, lá bem depois, um casal com diferença de três anos. Mas só conhecera o meninozinho, neto primogênito. A outra, só a vontade, só a lembrança.

Recém esposo, vendia de porta em porta, mas depois arranjou um ajudante. De bicicleta, fazia as cobranças. E ele, o filho do Joaquim, só pra lembrar, ficava em casa calculando os prejuízos. Dinheiro dá essa sensação de poder, o dos cálculos. Não à toa, a meninada de três – a princesinha, o que não aprendeu a tocar cavaquinho e o que era a cópia dele – adorava brincar de banco no quarto do quintal. Homem pra algumas sortes, também jogava e trabalhava no jogo do bicho para manter essa sede de lidar-com-gente. Ganhou pouco dinheiro, mas o que ganhou mesmo foi uma loteria para administrar. Uniu o útil ($) ao agradável (#). Era no nome da esposa, professora das boas, dessas pra vida toda. Mas quem mandava mesmo era ele. Pelo menos ela o fazia acreditar nisso.

Mandava, tinha boas intenções. Mas fez muita merda. O filho do meio, o mais sonhador, foi o que mais sofreu. E o que mais aprendeu. Era o oposto dele, um suplício pra um homem que se via no espelho sempre que possível. Depois viria a admirar esse filho do meio, o oposto. Quase tarde demais, pois a vida tratou de colocá-los juntos oito meses antes. Por isso, gostava de ir à igreja pra agradecer. Por tudo e por nada. Habituou-se. Sempre no domingo, às sete da noite. Todos arrumados, ele principalmente. Antes, quase ao meio-dia, levava a família para comer churrasco de carne e queijo coalho na brasa. Sentia-se feliz, o provedor. Ouvia música religiosa, dessas que apazigua o coração, aquieta a mente. Ou seria o contrário? Não era carinhoso. Ops, era sim, só ao jeito dele. Tapinha nas costas, passava a mão nos cabelos dos filhotes, assanhando-os, e um beijo na testa da matriarca.

Ele a respeitava, mas quem gritava alto era ele. O homem da casa. Um cão que só ladrava. Lição de moral mesmo era assunto de mãe. Mas batia sim, menos na menina. Corretivo era pros meninos, assunto dele. No que era seu oposto, surra das boas. No caçula, mão leve e bajulação madalena-arrependida pelo que fazia com o do meio. Queria filhos varões, mas mudou de idéia quando perdeu os dois. Um na vida, outro na morte. Já se preparara pra isso, de certa forma. Tanto que gostava de guardar recortes de jornal. Coisas boas e ruins da vida, naturalizadas nesse hábito secreto. Ilusão de capturar a realidade que sempre escapava das suas mãos. Não a entendia, mas, pra isso, a punha na ordem que queria. Diagramava a realidade. Fazia efeito. Ficava bem humorado.

Pois quando se casou, já passava dos quarenta. O filho do seu Joaquim-Quinquim.


PS: Conto também é canto, também é trilha

2 comentários:

criscalina disse...

fiquei pensando o quanto cada uma dessas palavras foram ruminadas...
foi um bom parto.
beijo,

joubert disse...

Pois foi, gata.

Tem algo de fantástico nesse conto, uma não linearidade, coisas que deduzi na dor de ser terceira geração... Rememorar é reinventar um pouco ou muito...enfim, foi um bom exercicio de divã literário, rs...

Bj.