quinta-feira, janeiro 31, 2008

Grandes ações são anônimas

Se a grama do vizinho é mais verde e bonita, isso não é motivo para não enxergar beleza no entorno da minha. Mas se, de repente, essa grama verde e bonita corresse algum risco, importaria mais que a minha? Quer dizer, a grama do outro merece algo além de só uma quase inveja meio ultrajada de admiração duvidosa? Ou melhor, que tipo e grau de poder tenho, temos, sobre a vida dos outros, anonimamente? Se a oportunidade faz o ladrão, pode também fazer o caridoso (na falta de outra palavra). Mas tudo isso parece exercício de ficção, pois, de fato, não temos tanto poder sobre a vida dos outros. O que temos é a possibilidade de colocar ou tirar algo que resultará em aproximados e não nos exatos planejados. Já ouvi que o ápice do prazer da vingança está em arruinar a vida do outro-objeto sem este o saber, aí quando ele-este estiver na ruína, na lama, na merda, em qualquer pior-bem-pior, o então vingado chega e detalha todos os porquês, que nada foi tão por acaso quando pareceu, mas pura causalidade. Maquiavélico, né? Deve ter sido deste aqui, enfim. Agora penso que se a história fosse outra, d'outro jeito. No lugar da vingança, a bonança, a generosidade, mas que, ao final, nada fosse dito, nem revelado. Ações más tem consequências, sabemos, mas as boas são as maiores, cuja grandiosidade vem do anonimato. E, num dia qualquer, num dia pós tudo isso que uma ação boa e anonima fez, faz, o benfeitor se depara com uma dedicatória para "um homem bom". Passa no caixa, compra o livro. O vendedor pergunta p'ra quem. Anonimamente, ele responde: "é p'ra mim". E a vida (dos outros e a dele) continua. De outro modo, de uma maneira providencialmente humana, com honrarias que só eles dois podem e devem saber, e ninguém mais.

Que a graça é outra, também.

PS: A ficção tem o poder de lançar olhar novo para trilhas sofridas de cantos distantes. Pois ajuda a reelaborar atrocidades de outrora, bem mais que só amenizar ...

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Imagem justa

Sempre arranjo um pretexto pra ter uma idéia. São muitas, diárias, horárias. São tantas, urgentes, virulentas.

Idéias é algo bom. Revigora a mente, desenvelhece o corpo. Remetem a sonhos, anseios, desejos, querenças, genialidades, pessoas.

Aprendi, há pouco tempo, - ou até soubesse, mas foi há pouco tempo que me dei conta - que os bons sonhos, anseios, desejos, que as boas querenças, genialidades, pessoas são as que sobrevivem, permanecem, continuam nesse mundo por demais.

O que tenho feito nesse um ano é tudo isso e mais um pouco, um pouco menos, menos um pouco, mais ou menos tudo isso. De uma pré-dança virou pretexto pra ser proto-pré-literária.

Aqui. Um canto de fazeres. Uma trilha de saberes. Enconderijo de saudades. Transversal, entrecortado, multifacetado, déficit, superávit, tangente, tingente, versado, prosado. Aqui, divã incidental.

Eis a imagem que lhe (me) parece justa pra o que (quem) dança nas (in)tempéries.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Poema torto de uma prosa incerta

Primeira tentativa:
Cantar o não vivido
é também uma forma de dançar
o improvável

Segunda tentativa:
Trilhar o não desejado
é também uma forma de cantar
o intocável

Terceira tentativa:
Dançar o não pensado
é também uma forma de trilhar
o impronunciável

Aspas, por favor
Sinto que essas palavras não são
minhas

Aspas, por obséquio
Não sinto essas palavras
minhas

Quarta tentativa:
Talvez.

terça-feira, janeiro 08, 2008

O filho do seu Quinquim

Ele tinha 65 anos.
E reviveu aos 60.
Mas morreu aos 25.
Filho do seu Joaquim-Quinquim.

Morreu sim. De tristeza, poderia dizer. Daquelas que abatem qualquer mente jovem. Porém, diferente das de hoje, um pouco igual, confesso, mas um pouco bem diferente, idem. Sua fantasia não dependia da programação da televisão. Não tanto, já que se percebeu jovem, exatamente no ano de 58. Queria ser músico, mas, de certo, nasceu boêmio. Tocador de violão e cavaquinho. Ouvia muito rádio. Aprendeu de ouvido. Tentou ensinar ao filho que ainda viria a nascer, bem lá depois, mas foi em vão. Cultivava um bigode, costeletas e desejos. Cabelos ondulados, voz grave. Noivou cedo, mas casou só bem na frente, com outra. Via-se no espelho sempre que podia. Sensibilidade camuflada. Homem pra dedéu, dizia.

Era o mais velho dos irmãos. Oráculo. Logo novo, já aprendera a ganhar dinheiro. Fez pequena fortuna. Mas casamento, nem pensar. Por enquanto não. Era do tipo ainda-não-chegou-a-hora, mesmo já noivo, como falei. Ajudava a todos, homem de bom coração. Só não ajudou muito a si mesmo. Talvez, por isso, era mascate, do tipo moderno, não pós. Manaus, Teresina, Fortaleza, Aracajú, Feira de Santana, Salvador, São Paulo. Tipo Seu Quequé, pouco provável. Só suspeitas. Acreditava que iria enriquecer pelo comércio, lidando com gente. Gostava.

E muito, de lidar com gente. E lidou sim. Mas não juntou tanto, só o suficiente para uma juventude com ares lúdicos de prosperidade. Nunca matou ninguém, a não ser de raiva. Era teimoso demais. Porém, sabia de quem já havia matado gente. Um caso somente. Foi algo não premeditado, mas que lhe tirou algumas noites de sono. Pois acreditava no mundo melhor. Tanto acreditava que pretendia ter filhos. Eles vieram, bem depois: três. Um deles, sua cópia e quem o levaria na frente, de mãos dadas. O outro era o do cavaquinho, o que não quis aprender. Dois mais uma, eis a princesinha. Era como ele a chamava, ela que lhe daria dois netos, lá bem depois, um casal com diferença de três anos. Mas só conhecera o meninozinho, neto primogênito. A outra, só a vontade, só a lembrança.

Recém esposo, vendia de porta em porta, mas depois arranjou um ajudante. De bicicleta, fazia as cobranças. E ele, o filho do Joaquim, só pra lembrar, ficava em casa calculando os prejuízos. Dinheiro dá essa sensação de poder, o dos cálculos. Não à toa, a meninada de três – a princesinha, o que não aprendeu a tocar cavaquinho e o que era a cópia dele – adorava brincar de banco no quarto do quintal. Homem pra algumas sortes, também jogava e trabalhava no jogo do bicho para manter essa sede de lidar-com-gente. Ganhou pouco dinheiro, mas o que ganhou mesmo foi uma loteria para administrar. Uniu o útil ($) ao agradável (#). Era no nome da esposa, professora das boas, dessas pra vida toda. Mas quem mandava mesmo era ele. Pelo menos ela o fazia acreditar nisso.

Mandava, tinha boas intenções. Mas fez muita merda. O filho do meio, o mais sonhador, foi o que mais sofreu. E o que mais aprendeu. Era o oposto dele, um suplício pra um homem que se via no espelho sempre que possível. Depois viria a admirar esse filho do meio, o oposto. Quase tarde demais, pois a vida tratou de colocá-los juntos oito meses antes. Por isso, gostava de ir à igreja pra agradecer. Por tudo e por nada. Habituou-se. Sempre no domingo, às sete da noite. Todos arrumados, ele principalmente. Antes, quase ao meio-dia, levava a família para comer churrasco de carne e queijo coalho na brasa. Sentia-se feliz, o provedor. Ouvia música religiosa, dessas que apazigua o coração, aquieta a mente. Ou seria o contrário? Não era carinhoso. Ops, era sim, só ao jeito dele. Tapinha nas costas, passava a mão nos cabelos dos filhotes, assanhando-os, e um beijo na testa da matriarca.

Ele a respeitava, mas quem gritava alto era ele. O homem da casa. Um cão que só ladrava. Lição de moral mesmo era assunto de mãe. Mas batia sim, menos na menina. Corretivo era pros meninos, assunto dele. No que era seu oposto, surra das boas. No caçula, mão leve e bajulação madalena-arrependida pelo que fazia com o do meio. Queria filhos varões, mas mudou de idéia quando perdeu os dois. Um na vida, outro na morte. Já se preparara pra isso, de certa forma. Tanto que gostava de guardar recortes de jornal. Coisas boas e ruins da vida, naturalizadas nesse hábito secreto. Ilusão de capturar a realidade que sempre escapava das suas mãos. Não a entendia, mas, pra isso, a punha na ordem que queria. Diagramava a realidade. Fazia efeito. Ficava bem humorado.

Pois quando se casou, já passava dos quarenta. O filho do seu Joaquim-Quinquim.


PS: Conto também é canto, também é trilha

quarta-feira, janeiro 02, 2008

A incerteza de cada novo dia

A trilha do ano novo findou em vermelho.
Iniciou-se azul, Farol de expectativas boas.
Há algum sentido nisso, certa previsão, certa provisão.

Permiti-me ser ritualistico: rosa na mão, pensamento fundo e foco no pedido, o ato de jogá-la como oferenda ao mar. Pés molhados a contra gosto, mas sem estresse. Botou o pé em areia é pra se molhar. Paráfrase. Abraços menos figurativos, abraços de verdade é o que foram. Parecido com a virada de 6 pra 7, também na praia, com amigos em volta, desconhecidos no entorno. Outra orla, sentimentos semelhantes. Mas alguma coisa foi diferente, sinto, sei. Pareceu diferente. Um diferente igual.

Vejamos.
Esse ano passei a virada mais feliz com a minha maturidade. Uma inquietude serena, uma serenidade inquieta. Até filosofei com uma baiana a cerca dos abarás e acarajés da minha vida em Salvador. Disse ela, os abarás pequenos são os melhores. Acreditei e comprovei, mas logo retornei ao meu momento ano novo. Isso, maturidade de ver que as coisas estão melhores, justamente por elas estarem sendo vividas, e não só planejadas como outrora. Claro, há pendências, sempre haverá alguma. Não é o simples passar de um ano pro outro, em um dia pro outro que as coisas mudam.

Pois, como disse, todo dia é dia de ano novo. Se não disse, digo agora.

Então fui ao encontro do amado in process, in progress. Trânsito. Boina xadrez. Tênis verde-amarelo. Camisa branca. Cinto azul com vermelho. Expectativa boa, have a good time together. E a maldita frase, ouvida na recepção - "estamos entre amigos" - que, mal-compreendida, não me livrou de um incômodo: a canalhice de alguém que se estava quase gostando, de um quase namoro. A canalhice me fez ver isso, paradoxalmente, pois ao ver, constatar, rejeite-a, -o. De encontro a.

Paradoxal mesmo. Aí, o que fazer...

Batida no ombro, um adeus improvisado com o dedo polegar, uma cerveja de saideira (pra manter a pose) e olhos vermelhos na parada de ônibus. Uma hora pra chegar em casa: caminho errado, mas consertado por um citytour-divã-azul-das-6-da-matina.

Um amigo meu disse que fui trouxa. Ele já é um descrente. Antes do fato, uma amiga disse pr'eu investir. Ela, uma romântica realista. O que sei - eu, algo entre os dois - é entrei o ano na real, quer dizer, vivendo, colocando-me à prova. Fui, voltei, vim. Fiz escolhas. Ação tem consequências. Mar, promessas, sorrisos, amigos, lágrimas.

E o dia raiou pra me dizer tudo isso de outra forma. Sem máscaras, sem fantasias. Queira ou não queira, a incerteza acaba sendo a melhor parte da história de cada novo dia.